terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Positiva e soropositiva

O que você faria caso se apaixonasse perdidamente por alguém, se entregasse à essa pessoa e depois, em uma conversa muito delicada, descobrisse que ela é contaminada pelo vírus do HIV? Tentaria superar essa barreira ou fugiria? Isso não aconteceu comigo, mas já aconteceu muitas vezes com uma grande amiga que conheci por aqui. O lado triste dessa história é que ela é o personagem contaminado e todos os outros personagens, infelizmente escolheram a segunda opção.

Vina e seu típico (e contagiante) sorriso 
Talvina, uma guerreira de 32 anos, que trabalha como educadora na ONG ASSCODECHA, onde tenho voluntariado, da aula de teatro, dança e ensina lições de vida valiosas à muitas crianças do bairro do Chamanculo, em Maputo.

Uma pessoa de energia única e muito positiva. Gosta de uma boa conversa, mas só se abre sobre a sua vida pessoal com quem confia de verdade. Acredito que nem mesmo as crianças, que estão com ela todos os dias, sabem da sua condição, o que não muda em nada a relação de "segunda mãe" que tem com eles.

Não será a primeira vez que vocês me ouvem dizer isso, mas tive uma conexão muito boa com a Vina, como é carinhosamente chamada pelos amigos. Foram poucos minutos de conversa para que ganhássemos confiança um no outro e, depois de alguns dias, já nos chamávamos de "irmãos".

Sua história poderia ser triste, mas eu prefiro chamar de "bonita". Faço questão de contá-la, não pelo drama, mas sim pela sua superação, que é algo muito motivador. Contarei essa história com a mesma riqueza de detalhes que ouvi, mas antes disso preciso apresentar alguns dados sobre essa infeliz relação entre Moçambique e HIV, o inimigo nº 1 do país. 

A última estimativa oficial (Ministério da Saúde) diz que 11,5% da população adulta esteja contaminada, mas acredita-se que esse número seja ainda maior considerando a quantidade de pessoas que não fazem o exame e nem mesmo sabem da sua contaminação. Já uma linha nada oficial, que ouvi de amigos da minha idade, acredita que em todas as casas haja pelo menos um contaminado. Verdade ou não, o vírus está por aqui, andando solto por um país em que, mesmo com tantas campanhas, as pessoas preferem virar a cara para a problema. 

Na inocência da sua juventude, Vina não sabia muito sobre assunto, assim como a maioria das pessoas do seu convívio. Viveu um relacionamento com um soropositivo sem saber e, acreditem se quiser, descobriu que estava contaminada apenas 10 anos depois. Segundo ela me explicou, casos como esse são muito comuns, onde o vírus é contraído, mas só se manifesta muito anos depois.

Aquele era apenas o começo de uma vida turbulenta. Cheia de perdas e dores, que fizeram de Vina o que é hoje: uma guerreira com um poder maior do que até mesmo ela consegue entender.

Foi mãe aos 15 anos, no primeiro relacionamento de sua vida. Segurou essa barra sozinha, sem apoio da família ou do próprio namorado, que a abandonou para viver com outra mulher, com quem, por ironia do destino, se casou no mesmo dia em que Vina dava a luz. Para aumentar a tristeza, esse homem, por quem ela ainda guardava certa consideração, morreu atropelado antes que o filho João Carlos completasse seis meses.

Dois anos depois, começava o seu segundo relacionamento, dessa vez com um homem mais velho e já muito doente. Enfrentou barreiras impensáveis para alguém com 17 anos. A responsabilidade de sustentar a casa e cuidar do marido era tão grande, que nem mesmo pôde cuidar de seu filho, que teve de ser criado por um de seus irmãos. Já sem qualquer apoio familiar e vivendo em péssimas condições financeiras, o destino fez com que perdesse também o segundo homem de sua vida. 

Daquele relacionamento, não ficava só saudade. O homem, com quem viveu por dois anos, deixou à Vina um filho, ainda com semanas de vida, e também o vírus do HIV, o qual ela só descobriria muitos anos depois. 

Como se já não fosse drama suficiente em sua vida, o seu sogro, pai do homem que acabara de perder, começou a lhe assediar de forma ofensiva e constrangedora.

Quando as coisas finalmente ameaçaram melhorar é que veio a maior de suas dores. Ao mesmo tempo em que passava por sérias crises de saúde, era obrigada a ver seu filho também adoecer de forma rápida e preocupante. Já com dois anos de idade, e ainda sem andar ou mesmo engatinhar, a criança não resistiu. Era a vida, trazendo a ela a terceira e a maior de suas perdas.

Sem ter dinheiro nem para enterrar o filho, foram necessárias muitas doações de amigos para que ela pudesse prosseguir. Àquela altura, nem mesmo lágrimas lhe restavam.

Porém, depois de tantos dramas, a vida parecia lhe oferecer uma trégua. Voltou a estudar, morar na casa da mãe e, aos poucos, ver seu estado de saúde também melhorar. 

Foram 8 anos de certa estabilidade até que sua vida começasse a balançar novamente. Naquela altura, os sintomas do HIV já vinham com tudo e o sentimento de estar morrendo, sem nem mesmo saber o que lhe matava, a encorajou a fazer o exame.

No caso dela, o resultado veio como um alívio, já que ela não podia mais suportar aquela angústia. Ao receber o exame e ver que era positiva, tudo o que conseguiu dizer foi: "Graças a Deus". 

Dali em diante, as coisas não foram nada fáceis para Vina. Com a doença evoluindo, ela passou por dias muito ruins. Enfrentou dores intensas no corpo e outras ainda maiores na auto-estima.

O preconceito, seu maior inimigo até hoje, foi a grande causa de sua dor. Se cansou de ouvir na rua gritos de "doente", "assassina" e coisas muito piores, vindo de pessoas que a viam como uma possível "propagadora" do vírus. 

Tamanha dor só se amenizou quando Vina decidiu que era a hora de voltar a viver. Pediu dinheiro emprestado à uma amiga e, mesmo ignorando previsões de que ninguém compraria nada de uma "doente", ela começou a torrar amendoim e vender em uma barraca na rua. "Um amigo nem acreditou, quando passou por mim algumas semanas depois e viu a minha banca lotada". Disse ela, comemorando o início da sua grande virada.

Seu primeiro passo estava dado, mas o segundo sim que foi o mais importante. Vina, que tem um coração enorme, começou a pensar em formas de ajudar a comunidade. Formou um grupo de crianças para ensiná-los dança e teatro, ignorando o fato de que ela não tinha qualquer formação em nenhuma dessas áreas.

A coisa começou a andar e em pouco tempo ela já estava fazendo a comunidade sorrir. Esse momento também foi essencial para que ela descobrisse em si um talento enorme para dança, canto e teatro (talento que eu testemunho após assisti-las por algumas vezes!).

Como precisava pagar as contas, ela conciliava os trabalhos voluntários com jornadas como cozinheira e faxineira na ASSCODECHA. Como se poderia prever, não demorou muito para que a ONG descobrisse todo aquele talento e potencial, trocando a vassoura e a panela de suas mãos por uma sala cheia de crianças. 

Assim começava a grande missão de sua vida, que hoje ganhou o nome de "departamento de Juventude" da ASSCODECHA,  coordenado por ela e ajudando centenas de crianças da comunidade. Sua interferência não limita-se a apenas aulas de dança e teatro. Também sob sua coordenação estão aulas e competições esportivas, passeios educativos, exibição de filmes sobre questões sociais e também palestras à comunidade sobre alcoolismo, uso de drogas e HIV, a qual ela faz de forma particularmente bonita e emocionante.

Não conto essa história aqui por causa da doença, do drama ou do romantismo. Conto por conta da superação. A história da guerreira que deu a volta por cima quando a vida quis jogá-la para baixo. De alguém que soube usar tanta tristeza e sofrimento para se tornar uma pessoas mais forte e altruista. Um exemplo de determinação e solidariedade que merece ser compartilhado!

Assim como qualquer ser humano, Vina tem seus autos e baixos e, de vez em quando, o sorriso some e da espaço à lágrimas no seu rosto. Dúvidas surgem assim como lamentações por não ter uma casa, um marido ou uma (típica) família.

Acredito que tudo acontece na hora que tem que acontecer e, para aqueles que são grandes merecedores, como Vina, há de vir de forma muito especial. Corrijo ela quando a escuto dizer que ainda não possui nada. Pois o que ela tem é muito maior do que qualquer casa, carro ou riqueza.

Ela tem um dom, um talento e uma missão. Missão a qual tem cumprido de forma fantástica, salvando a vida de milhares de crianças jovens e adultos. Uma super-heroína, com o poder de transmitir aquele sorriso largo de seu rosto, para muitas outras pessoas, como eu e todas aquelas crianças que hoje a chamam de "segunda-mãe".

Vejo nessa história um enorme potencial para nos fazer repensar o real tamanho de nossos "problemas" do dia-a-dia. Como um exemplo de superação a ser seguido por pessoas contaminadas ou não pelo HIV. Como uma emocionante lição de vida, da qual eu espero sempre me lembrar.

Obrigado Vina, por ser tão especial!





"O bem me faz bem. É através do bem que tento transmitir aos outros, que o receberei de volta.
Viver tranquila é tudo o que quero … Descobri que através disso alcançarei a paz, no mundo e na alma. 
Amo minha vida, mesmo cheia de obstáculos" (palavras de Talvina Armando Manheça, em seu diário pessoal)


2 comentários:

  1. Linda história de superação! Emocionante!!! E importante também compartilhar informações sobre a doença, que hoje em dia é mais superável (vive-se melhor, em melhores condições) devido a tratamentos, mas ainda muito descriminados aqueles que são positivos. Rodrigo, como na África é tratado esse assunto? As pessoas tem acesso a tratamento, medicação? Abraço KáMaria

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  2. Karina, o assunto aqui ainda é delicado. Não faltam tratamentos e medicamentos, oferecidos de graça pelo governo. O que falta é informação, pois apesar dos altíssimos índices de contaminação, pessoas continuam não buscando se informar ou se prevenir! isso é o que deixa a coisa pior!!
    Campanhas de concientização estão por todo o lado, mas isso, infelizmente não tira o enorme preconceito que envolve esse assunto por aqui!!

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